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pré-jobim #3

Lá fora é março e chove, como se imagina.

Coloquei o Matita Perê para rodar e Tom aperta as teclas que fazem o rancho das nuvens preencher o ar ao meu redor.

Eu, em tinto, sinto sobre o papel.

Lá fora chove, e chove.

Não estou em poço fundo onde Tom viu tanta agua cair, estou mais ao mar.

É o fundo do poço.

E fui ao mar em tanta chuva, tentar pau, pedra, fim do caminho. Achei, perdi.

A lenda canta que Tom fez Águas de Março quando, exausto pela composição do Matita Perê, teve, como em um descanso, pensamentos simples: pau, pedra, caco, laço, anzol, madeira, canseira, ribeira.

O sujeito, em descanso, encontrou a melhor forma de encaixar as melhores palavras. “As melhores palavras estão pálidas de exaustão”, “queria escrever como se a literatura nunca tivesse existido”. Sempre penso nisso, sempre, é quase uma sina.

Estepe prego ponta ponto pingo pingando conta conto.

Roubou o verso de Bilac: “foi em março, ao findar das chuvas...”.

Lá fora é março e chove.

Roubou o verso de uma macumba: “é pau, é pedra, é seixo miúdo, roda a baiana por cima de tudo". 

Misturou em poço fundo, em projeto casa corpo cama carro enguiçado lama lama garrafa cana estilhaço estrada cobra pau João José espinho mão corte pé águas março fechando verão.

Lá fora chove, é março.

Matita Perê pode ser um moleque negrinho de chapéu e calção vermelho, que pita a cachimbeira e pula na sua perna única: saci.

Mas no caso de Tom trata-se do passarinho, tal: urubu, tal Passarim.

Em Águas, Tom fala o Matita Pereira, uma de suas tantas formas de chamar, como nos conta Drummond.

Escolheu para rimar com madeira, em licença. Passa maestro.

 

Isso tudo para dizer que a idéia desse pré-jobim é revelar as palavras que estiveram sempre ai, pairando no ar, e que Jobim soube recolher, ordenar e balançar da forma certa.

As melhores palavras, muitas pálidas de exaustão, dispostas como se a literatura nunca tivesse existido, em um samba que não chora e também não sorri, que tropeça apenas para encontrar/entortar o caminho.

A maioria das palavras arranjadas aqui são substantivos, a maioria desses substantivos abrigam coisas e parte dessas coisas restam na obra em sua forma natural: o pau, a pedra, o anzol, o caco, o tijolo e outras. Outros substantivos abrigam coisas que estão por outras formas: a mão, o peixe, o sapo e outros. E há ainda outros substantivos, assim como os poucos adjetivos, verbos e pronomes da letra, que, por não serem coisas, estão como simples palavras, pescadas em versos de Drummond (como caminho), Moraes (como casa) e Neruda, Bandeira, Rosa e Cabral, figuras que sei que Jobim lia. Há casos, ainda, de palavras pescadas em dicionários ou enciclopédias.

A obra serve para pouco, ou quase nada. Por ser impossível dar ordem melhor, resta talvez botar na fila que Jobim cantou, ou, simplesmente, deixar de canto para que de quando em quando, sempre que for mirada possamos lembrar que a poesia paira no ar, é preciso apenas percebê-la, inspirá-la e transbordá-la caneta abaixo.

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