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a poesia venceu

 

Uma declaração à praça.

Um poeta grita, sem pudor, o amor que sente por aquela menina.

Em pleno estado de euforia, espalha a boa notícia: Vamos nos casar!

Poderia ser cena de filme ou cena de vida. É porém, o anúncio-poema que o artista Deco Adjiman inseriu em um jornal de grande circulação, tornando público seu gesto de amor.

Inserções de peças artísticas em jornais não são novidade, no Brasil temos Paulo Bruscky como brilhante exemplo.

Mas o poema de Adjiman não se pensava obra. Era apenas poema vivo. Poesia escorrendo para fora, extravasada.

Ele tampouco havia ouvido falar (ainda) de Bruscky ou de quase nenhum nome ligado às artes visuais. Sobre isso conhecia surpreendentemente pouco.

Foi com 9 anos que ouviu, na escola, um poema de Gonçalves Dias. Parece que aquilo reverberou seu mundo de criança de modo violento, transformador.

O poema do grande expoente do romantismo brasileiro da tradição literária conhecida como indianismo, era I-Juca-Pirama e relata a história de um guerreiro tupi sobrevivente que cai aprisionado por uma tribo antropófaga dos Timbiras e que deve ser sacrificado conforme o rito. Antes do sacrifício, o chefe Timbiras propõe o canto às suas façanhas, para que os bravos Timbiras tivessem assim maior gosto em sacrificá-lo. Desse canto nasceu o tal poema.

Foi com essa pouca idade que a poesia virou seu brinquedo. Começou a escrever seus próprios versos, que, ao acaso, desdobraram-se em projetos e composições feitas em madeira e papel.

Há outras possíveis referências estéticas e visuais na obra de Adjiman, ele porém, não havia ouvido falar (ainda) de nenhuma delas.

O que conhecia era a poesia, muitas. E o que conhecia, ainda melhor, era o mar, o amor, e a dor. A falta dos que cedo o deixaram só nesse grande mundo. Só com as palavras. Conhecia os tocos, os pedaços abandonados, as beiras.

Nos conhecemos há cerca de um ano, numa noite qualquer, em sua oficina. A oficina para assuntos diversos era coisa recente, que aconteceu depois que a dobra da palavra tomou forma de tronco, remo, arado e não cabia mais em casa. Foi uma alma sensível de nome Paula Raia, a quem agradeço imensamente, quem nos apresentou: alguém precisa ver aquilo, me disse.

A oficina era repleta de peças, palavras, madeira. E desejo. Não apenas de botar a alma no mundo, mas de dar entendimento àquilo que fazia obsessivamente no seu pouco tempo livre, ocupado com seu emprego fixo.

Não havia trilhado nenhum dos passo comuns aos artistas iniciantes, nenhuma exposição no currículo, nenhuma aula de arte, nenhuma participação em salão, nenhuma residência. Seus poemas-esculturas eram seu ócio-ofício.

Tendo Baudelaire, Bandeira, Jobim, Gullar, Pessoa, Ginsberg (e muitos outros), como companheiros de estrada, executava seu ofício com maestria, e sem pretensão. Mania de poeta.

Alguém precisava ver aquilo. Juntos fomos construindo lentamente essa exposição. A sala da Sé parecia perfeita, as peças solitárias iam se encaixando como num quebra cabeça, tendo como pano de fundo o piso antigo e a janela com vista para o passado colonial.

Em visita, seu pai me confessou: criei um artista. E ao ver o filho exibindo sua particular habilidade em transformar palavras em coisas pensou fundo em voz alta: isso ele tirou do meu pai.

Sim, deve ter sido assim. E o que somos, afinal, além dos nossos avós, nossas memórias, a vida que passa, o pau, a pedra, a menina, a dor da saudade, a vida do índio, o estilhaço na estrada, o amor que corre apertado nas veias?

A palavra que o artista sussurrava sozinho na máquina de escrever, seu imenso bloco de tristezas em forma de pedra, deixaram-o novamente sozinho, foram para o mundo e pairam no ar.

Há dias que só falamos de abismos.

Há dias em que a prosa desiste exausta e a vida se vê vencida pela poesia.

Um verso, de sua autoria, tarefa, diz: “é fácil combinar as palavras, difícil é interromper o silêncio”.

Seu silêncio, antes calado, se apresenta novamente como grito, cada obra repleta de palavras tiradas das profundezas dos espíritos, interrompendo o silêncio de cada um, preenchendo a Sé de uma sinfonia de novos silêncios-abismos.

Essa jornada em alto mar não é tranquila nem tampouco finita, por isso nos agarramos com força aos pequenos afetos. Para tornar possível a viagem.

É a poesia da existência, que mesmo vencida, morta, sozinha, se levanta a cada minuto, sem jamais desistir da cotidiana labuta da vida.

 

Maria Montero

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