Pode estar nas coisas, simplesmente, mas não apenas na mais intensa vontade de ser. Isto nem adiantaria. É que o esforço é exercício de primeira ordem. Não está no derrame difuso de quem lê um livro e se entrega fervorosamente em relatá-lo a um passante. Está, quem sabe, na indeterminação de dois tempos e de dois lugares, demasiadamente distintos e próximos. Nas afinidades e contradições notórias de ser um e outro, em que cada um destes credita ao outro o artifício de que o outro, sim, é a metáfora descoberta. Ou ainda, como diria Borges em El otro (1975): o artifício de construir um análogo nunca será apenas a existência de seu dobro, pois se trata de um encontro real para os dois, como espelhos que refletem o diferente. E por não ser ilusão, posto que é vigília, como um inevitável destino, ali, em um banco, os dois conversaram e são eles mesmos, os dois, a prova de tal possibilidade em ser outro e um.
Retomar Borges para adentrar os impasses da operação tradutória, e digo impasses, pois estamos em um terreno que é mensurável pela recriação, pela “trans-criação”, pela metamorfose constitutiva, pode requerer um breve parêntese: este eu e este outro eu que se encontram, entreolham-se, estranham-se, atormentam-se. E nisto de atuarem na definição de ser sempre outro e eu concomitantemente, acabam por se modificarem, sem serem derivações, mas alteridades devedoras histórica, poética, politicamente entre seus aspectos.
Além disto, o cárcere de quem enfrenta a tradução é o da coincidência, da sincronia, da ambivalência ressonante entre formas que se constituem como uma relação presente-passado, como consumo que é também produção de sentidos outros e como estética de “desreferenciação” imaginativa, tal como escreve Julio Plaza. E que tem em sua complexidade a lógica construtiva da contaminação e da subjetivação interdependente: uma interação para ler/fazer o novo no velho, trazê-lo sem a pretensão de ser o mesmo, numa re-fatura estruturalizante. É preciso frisar: um outro, sensível a outro contexto, acontecimento de outra esfera, atravessando e operando uma outra fala.
É esta esfera poética que intensifica e enfatiza um hic et nunc, não próprio, mas inter-definível por outro, atravessando-o, que Deco Adjiman constitui para os trabalhos apresentados em eu,mesmo:outro, sua segunda individual. Deste título, encontro do artista com eu é um outro, de Rimbaud; com o conto El otro, de Borges; e com o verso inicial de Walt Whitman (Eu celebro a mim mesmo), podemos aferir a ação processual e contígua de um eu, reiterado, como presença e autoria, que se dão pelo desejo de estar outro ou mesmo de se encontrar em tantos outros. Nesse sentido, o artista experimentou os sentidos problemáticos tanto quanto transbordantes da tradução de poemas, versos, trechos, frases recortadas, títulos, entrelinhas e toda sorte de excertos provenientes de seus pares – escritores, poetas, romancistas, de Manuel Bandeira a João Cabral de Melo Neto. Assim, Deco fabulou estratégias de invenção e inscrição – da pedra, da madeira, do papel – para retomar as letras do outro, como quem rouba na surdina e esgarça fendas, mas confessa o crime com o intuito de apresentá-lo como um outro sistema de leitura/percepção, viabilizado pela tradução – estilhaçando as aparências e, ao mesmo tempo, trazendo, pelas mãos, o seu autor.
Há algo de labiríntico, de caminho sem saída em seus trabalhos, projetados mesmo para fugirmos da rota, para habitarmos sem certeza o movediço. Em suas arquiteturas, há gestos de extirpar, desfazer e tornar a fazer, extrair, subtrair, “inversar”, como propõe Deco. Tal como o cristal quebrado que não volta a ser o mesmo, talvez possamos pensar nesta imagem para ver/ler os livros dissolvidos neste espaço da Sé. Os procedimentos de Deco recolocam aquilo que já foi escrito, que já é história em sua dimensão literária, para, então, nos perdermos novamente: de onde vem original? Não importa (?).
Tantas coisas vão acontecer diante dos olhos de quem lê: palavras engarrafadas, livros silenciados, uma enlace de linhas entre Whitman, Rimbaud, Neruda, Pessoa, poemas, duelos de dialetos. E a própria leitura é outro furto. Sim, o artista nos propõe um furto, nos implicando nos veios das madeiras encontradas a ermo, na gramatura dos papéis escritos, no brilho da faca amolada. Está tudo aí, mas em contraponto com uma ausência. É que nada foi feito para estar muito claro pois a luta entre um mundo já escrito versus um mundo que ainda está a ponto de se inscrever estabelece implícita e externamente uma espécie de dedicação a uma reelaboração de outros. E não sabemos ao certo quem são, pois pertencem a um tempo de duração de um “enquanto”. E para tal, Deco se revisitou, como leitor, como feitor de seus planos, como autor também, e se inseriu entre a tarefa de tradução – infiel e traidora, por natureza – e o traduzível, aparentemente estável, coligado à tradição, mas a ponto de ser invadido.
Tem-se aí o que propunha Mallarmé: o livro foi feito para ser violado. Ao que os trabalhos de Deco acrescentam: a literatura, em sua teia, foi cosida para ser devorada, corroída, extraviada...
Galciani Neves
(entre os últimos dia de maio)